A CAMPÂNULA MISTERIOSA
- Ou o Aranhão de Infias -
Sim… é ali para os lados do coval de São Cristóvão. Entre moitas de giestas e tofos de matagal, ali onde corre a límpida água recoberta de musgo e de abrótegas de vários matizes coloridos. Ali, dizem, ter sido enterrado há muitos e muitos anos o misterioso Aranhão de Infias. Era um pobre pedinte andarilho que de aldeia em aldeia, de campânula em punho para chamar a atenção, granjeava o seu sustento quotidiano, evocando o nome de Deus e das almas. Todos o temiam e tudo se contava dele. Era alto e muito magro. Andava ligeiro, aparentemente coxo, com o apoio de uma tosca bengala e campânula numa das mãos. Na outra um ressequido naco de pão. Ao ombro um alforge besuntado cheio de nada, vestido de rota calça e com uma descolorida camisa pestilenta. Nos pés umas botainas velhas com meias solas descosidas. Meio corcunda e no rosto engelhado pelo rigor do tempo e da vida, viam-se-lhe ainda uns olhos de um tom mortiço azulado. Na cabeça uma gorra chapelada, cobrindo a careca carcomida. Todos o temiam. Dizia ele que tinha andado na guerra de catorze contra os Boches, nas Ardenas. – Vem lá o Aranhão, crianças, fujam para casa… que vos pode levar! Diziam os progenitores quando ao longe se ouvia a estridente campânula. – Vem lá o Aranhão, não lhe atirem pedras! Era esse o instinto da garotada que se escondia atrás dos silvados para vê-lo passar. E, se houvesse perigo, era só de ver as gargalhadas e a tremenda correria que tinha lugar até ao sítio mais seguro de uma casa ou de uma loja. – Vem lá o Aranhão de Infias! Era um coitado sem eira nem beira. Quando ele surgia ao longe, um qualquer dos adultos ia de imediato à masseira cortar um naco de broa. A que fosse mais retardada – que a vida estava difícil e bastante negra – e ele nunca rejeitava, agradecendo com uma arrastada e roufenha voz. – Bem-haja, pelas almas de quem lá tem! – Pode botar-lhe um fio de azeite e de vinagre? – É mais alimento e sabe melhor, bem-haja por Deus! E o Aranhão, murmurando ladainhas imperceptíveis, lá continuava para o portal seguinte, agitando a campânula mais uma vez e batendo ao portão com o varapau. Era sempre o cão da casa quem primeiro lhe respondia. Uma vez por outra lá calhava o resto de uma sardinha frita, uma isca de frango um pouco ou nada bolorento, enfim, era o que havia. Ele sorria misteriosamente e, naqueles dias mais inspirados, sentando-se numa pedra da calçada começava a contar uma daquelas estórias do outro mundo que ele dramatizava como ninguém. – Já sabe aquela do Boche barrigudo que tinha o costume de fazer as necessidades no barrete dele para oferecer ao padre? E as pessoas, com receio de eminente represália vespertina – era vulgar ouvirem-se à noite urros estranhos e voarem pedras sobre os telhados – lá o ouviam, ficando mais recheada a familiar colectânea de memórias para contar aos netos e vindouros. Todos se riam dele sem deixar, todavia, de o temer. Quando ele desaparecia no horizonte até se respirava fundo de alívio e de sossego. – Durante aí quinze dias ninguém o verá aqui por estas bandas! Um frio dia de névoa, na alta primavera, apareceu morto na beira da estrada, lá para os lados de São Martinho de Candoso. Todos lhe reconheceram o corpo menos o velho abade que, por ele ser um indigente e um marginal sem tecto, confidenciou para as beatas habituais da sacristia que não valeria a pena gastar água benta com tal figura. Assim o povo foi solícito enterra-lo, com uma campânula entre as carcomidas mãos, lá para os lados do coval de São Cristóvão. Entendiam que as neblinas frescas de São João desinfectariam os puros ares do coração do Minho. Quem diria que naquele coval inóspito e abandonado, nasceria mais uma lenda para recordar e juntar à celebérrima estória que nas proximidades – na românica paróquia de Cerzedelo – dá pelo nome de Segredo do Abade. É a lenda da Campânula Misteriosa. Contam os mais idosos que todas as madrugadas sanjoaninas, antes do raiar do sol, se ouve durante uns momentos, pelas quebradas das encostas íngremes de São Cristóvão, umas roucas badaladas de velha sineta de igreja. Todos dizem já o terem ouvido. A ser verdade, e por toda a gente dar ouvidos a mais esta trama supersticiosa, aqui se vê como os eventos por mais que sejam menosprezados ou desvalorizados, podem contribuir decididamente para a manutenção de uma memória colectiva perpetuada de geração em geração. Frassino Machado In CANÇÃO DA TERRA
FRASSINO MACHADO
Enviado por FRASSINO MACHADO em 25/06/2012
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