CANTO DE FRASSINO

Os meus horizontes são de Vida e de Esperança !

Meu Diário
18/11/2008 21h27
ANTÓNIO VIEIRA - LUTADOR PIONEIRO DOS DIREITOS HUMANOS
A Lusa Fénix
(Súmula da Comunicação feita ao Congresso Vieirino)

Prof. Assis Machado

I

O Século de Vieira (1600 – 1700)

António Vieira sintetiza na sua identidade humanista um perfil inconfundível, no qual se interpenetram de uma forma globalizante e harmoniosa aquelas qualidades primaciais que todo o ser humano alguma vez sonhou.
Desta arte, como clérigo, intelectual, político ou cientista, Vieira percorreu de uma forma segura todos os campos de intervenção possível, sempre com elevadíssima percentagem de sucesso.
Como escritor e orador, segundo critérios universalmente aceites, atingiu níveis de perfeição praticamente inigualáveis.
Como diplomata, economista e embaixador itinerante, foi na sua época – sem margem de dúvidas uma das mais complexas e conturbadas da História – incumbido de missões (de alto risco e de dificuldade extrema, convenhamos!) tendo conseguido todavia resultados altamente positivos.
Como cidadão, integrado numa sociedade fracturada e descaracterizada como a do seu tempo, tanto a nível nacional como internacional, demonstrou uma personalidade única de combatente inconformado e comprometido, numa luta solidária, regeneradora e criativa, empenhado na construção de um mundo melhor.
Todavia, a generalização da corrupção, da marginalidade, da pobreza e da degradação das Instituições daquela época, a começar pelas do Estado, com as fatais consequências como, a ostentação das elites, o abuso do poder, a intolerância, a repressão, a descriminação social e o surgimento de crenças messiânicas e milenaristas, etc. Eis, concretamente, o mundo do tempo de Vieira!
Apesar disso ousarei dizer que o Padre António Vieira – na amplitude do ideário que sempre defendeu e pelo qual lutou – deixou-nos indelevelmente de uma forma, direi profética, algumas das marcas carismáticas que viriam a ser apanágio do Século das Luzes.
Entre elas sobressaem, sem sombra para dúvidas, a paixão pela Liberdade e o respeito pela Dignidade Humana.

E a este propósito, lembremos que se celebra este ano – dentro de alguns dias, mais precisamente – o sexagésimo aniversário da aprovação oficial da Declaração Universal dos Direitos Humanos!

II

Vieira, o Argonauta de Deus

Vieira é antes de mais «filho do Século», quer dizer, é filho da mentalidade do seu tempo – o Século XVII.
Poder-se-á então deduzir que Vieira, desde a sua meninice terá herdado, além da educação de sua mãe e do seu ambiente familiar (no seio do qual viveu cerca de sete anos até embarcar para a Baía), alguns germens sociológicos típicos de uma Lisboa cosmopolita: a traquinice e a matreirice, a ousadia, o desenrascanço, a cara de pau e o pau para toda a colher, a entreajuda ou a sem vergonha das peripécias de um quotidiano sem eira nem beira.
E o pequeno Vieira, já em terras brasileiras, teve pelo menos ainda outros tantos anos de “educação urbanística” a somar àquela que levava do Continente. (1)
Claro que com estes argumentos eu apenas estou-me referindo a um potencial “complexo temperamental” que mais tarde o nosso ilustre Jesuíta esgrimirá nas mais díspares e estranhas circunstâncias nas quais teve que se envolver.
Trata-se obviamente de uma argumentação sui generis e a priori pois também é bem verdade que, a partir dos quinze anos, Vieira encetará, por razões que alguns biógrafos consideram familiarmente pouco esclarecidas, o seu percurso de formação escolástica e humanística.
E de tal ordem evoluiu esta formação que a sua vida e a sua personalidade a partir dessa data, segundo testemunhos seguros, se transformaram radicalmente.
É justamente sobre este homem que recai inequivocamente um dos mais complexos, contraditórios e polémicos libelos de que há memória na história sociocultural portuguesa.
Porém, analisada a questão a partir de uma outra perspectiva, assaz mais objectiva e assertória, teremos de convir que ninguém como Vieira conseguiu até hoje tão forte convergência no que diz respeito a um conceito de genialidade lusa e de modelo eficaz de cidadania.
E é precisamente neste contexto que pretendo inserir a tese que me propus expor nesta minha Comunicação.
E para reforçar este objectivo em vista teria intenção de fazer realçar alguns testemunhos de personalidades célebres da Cultura Ocidental que sobre o nosso autor fizeram questão de nos deixar.
Mas como o tempo que temos é exíguo apenas aqui deixo as palavras de Eduardo Lourenço, comparando a acção de António Vieira com a de Frei Bartolomeu de Las Casas:

“Las Casas viverá tempo suficiente para ver a Europa e a Igreja expostas a uma divisão sem precedentes. Mas isto não mudará a sua atitude no que diz respeito a encarar a questão do novo mundo à luz da velha unidade que de Roma era emitida.

Pelo contrário o tempo de Vieira é completamente diferente, intimamente fragmentado, inquieto e órfão de uma unidade carismática. Sendo assim o seu esforço, para um objectivo idêntico ao do bispo de Chiapas, confrontou-se perante uma realidade extremamente complexa a qual, no seu enredo evolutivo, assumiu foros de autêntica odisseia”. (2)

Apesar destes testemunhos, serem altamente prestigiantes para António Vieira cumpre-nos colocar frontalmente a nossa posição e questionarmo-nos: porque é que o nosso benemérito laureado tem sido tantas vezes ao longo da história julgado a partir de considerações pouco abonatórias, quanto a nós sem nenhuma consistência nem merecimento?
Há autores que o acusam de ter sido ambicioso e pretensioso nas suas intenções; outras vezes, vaidoso e adulador quanto baste; ainda outras, por presunçoso e teimoso nas suas manias pessoais; algumas das vezes, convencido, petulante e orgulhoso…
Que as suas teorias, além de complexas, perigosas e contraditórias, eram fruto de alucinações falaciosas e, as mais das vezes, mal intencionadas, sentenciaram uns tantos.
Outros tentaram fazer provar que ele, na sua conduta quotidiana, sempre escondeu a sua verdadeira identidade, sugerindo que ele era um judeu disfarçado de cristão-novo, que era oriundo (pela sua tez morena) de uma família negra de antigos escravos.
Quanto a estas acusações e argumentações provenientes muitas vezes de autores considerados como “sumidades”, sem que para isso demonstrem, esses sim, não terem os mínimos talentos… apenas responderei com o próprio Vieira, nas horas amargas de indignação: Non!
A partir deste Non – tendo em conta todo o percurso existencial que no meu entender contém em si todo o carisma de um predestinado Argonauta de Deus – reforçarei esta parte da minha Comunicação recordando as oportunas palavras de um dos conhecidíssimos especialistas de História Moderna Portuguesa:

«… se tomardes a vida do Padre António Vieira, pelo direito e pelo avesso, pelo princípio e pelo fim, sempre vai dar ao Non da política. Verdadeiramente ela tem qualquer coisa de “non”. Negava até, no seu corpo mulato, a pureza de sangue exigida pela Mesa da Consciência e pelos senhores Inquisidores». (3)

Reconhecendo a alta polemicidade desta questão, sublinho que António Vieira foi, efectivamente, o “Grande Padre” que o mesmo é dizer protector e “Pai”, que o foi na hora da grande Crise Portuguesa Restauracionista.
Porque no seu País tudo faltava: união, ordem, disciplina, dinheiro, armamento, navios, chefes militares, políticos competentes e … muitas coisas mais.
E o Rei Restaurador, tal como o confirma a história, viu nele o homem e o amigo certos para o lugar certo. Daí o ter-lhe confiado algumas missões de altíssima e delicadíssima importância.

III

Maranhão, o Éden pode esperar

Nos inícios de 1653 chegou o Padre António Vieira ao Maranhão, onde foi acolhido com muito júbilo, mas onde teve logo que lutar, contra todas as adversidades.
E de tal modo foram elas que, de imediato, resolveu regressar ao Reino para falar com o rei!
O rei ouviu-o e, concordando com o Plano que o excelso missionário trazia em agenda, ordenou que se organizasse uma Junta especial para as Missões.
Poderemos dizer que a partir deste momento estava dado o primeiro passo que ele ambicionava em relação aos Índios. Com este projecto em mente – Plano Alfa – partiu de novo para o Maranhão em Abril de 1655.
Durou meia dúzia de anos a sua permanência desta vez no Maranhão. Ali fez maravilhas a sua incessante e infatigável actividade missionária e humanista.
A mesma que sonhara já levar a cabo antes de ter vindo a primeira vez a Portugal em 1641, para reconhecer oficialmente D. João IV como rei de Portugal.
Devido ao facto do Rei o ter convocado para seu colaborador directo na Causa da Restauração – Plano Beta – é que se processou em sua vida o primeiro grande volte face a que Vieira atribuiu desde início foros de predestinação.
Faço aqui, a propósito, um parêntesis para registar essa histórica ocorrência. Cabe neste seu Sim histórico a pertinaz realização de todas as tarefas de Estado de que o monarca o incumbiu.
E não foram tão poucas como isso: ajudar a levar a bom termo a Guerra em curso; mentalizar todas as classes representadas na Corte da necessária e urgente contribuição para defesa do bem comum; fazer viagens diplomáticas para angariar apoio de países europeus à causa portuguesa; negociar a compra de navios e armas necessárias ao exército; convidar alguns oficiais distintos para reorganizar as forças armadas do país; conseguir apoios financeiros para colmatar o défice público; reorganizar o comércio das forças mercantis mais representativas.
Até aqui tudo bem! Mas, onde iria António Vieira encontrar as soluções certas para resolver toda esta problemática?
A sua brilhante intuição fez-lhe descobrir a “matéria-prima” ideal para levar a bom termo o seu Plano Beta: convencer o rei de Portugal da urgente necessidade de fazer regressar ao Reino todos os exilados judeus portugueses – em diáspora pela Europa – e, ao mesmo tempo, impedir por decreto imediato a perseguição feita pelo Santo Ofício aos Cristãos Novos. Segundo ele, eram estes a força viva da economia da Nação.
E esta foi a estratégia concertada entre o Rei Restaurador e António Vieira. E se bem o pensaram melhor o executaram.
Durante a década de quarenta, atingidos aqueles desideratos, foi possível revitalizar positivamente o tesouro público e, em troca, Vieira pôde de uma só assentada aplicar o seu estro em favor do Estado Temporal e, ao mesmo tempo, fazer chegar a hora da liberdade aos lusos cidadãos que a desejavam desde há muito.

Mas, voltemos de novo ao ano de 1655 e ao Plano Alfa de António Vieira.
Em última análise, este Plano era a concretização do seu velho sonho de juventude: fazer das longínquas e vastíssimas zonas do Maranhão um verdadeiro Paraíso na Terra, onde pudessem coabitar em liberdade e ser felizes todos os povos criados por Deus.
Para aplicação deste Plano, como sabemos de contornos delicados e complexos, Vieira levou a cabo um conjunto de medidas audaciosas.
Todas elas visavam a fundação de Missões, entre muitas das tribos de povos índios, tentando que, à semelhança da Baía, as aldeias ficassem entregues paulatinamente à direcção dos missionários. Quanto à sua acção directa pôs todo o seu cuidado em visitá-las.
Tarefa penosa, pelos incómodos e fadigas que impunha; milhares de picadas de mosquito dia e noite, o que, estranhamente, ele aceitava de bom grado, pelos frutos que esperava de tantos trabalhos e privações.
Ainda que Vieira tivesse sempre contado com o apoio do célebre André de Negreiros – que ele próprio havia proposto em 1654 ao rei D. João IV para o cargo de governador do Maranhão – acontece que esse apoio nunca foi suficiente nem eficaz para a sustentabilidade do Plano idealizado.
A verdade é que os interesses dos colonos exploradores eram, no fundo, superiores às suas forças. As leis, emanadas do Reino, por decreto real ou mesmo por decisão das Cortes, raramente tinham aplicação no terreno e, quando aplicadas, a sua durabilidade era efémera.
Considerando, de igual forma, a fraca intervenção do Estado relativamente à colonização e à missionação, há que destacar que António Vieira sempre denunciou com pertinácia estas circunstâncias, fazendo chegar à Corte dos monarcas as suas prementes convicções e, em muitos casos, os seus lamentos para com a tibieza das práticas políticas dos governantes.
Recordo oportunamente, acerca desta problemática, as palavras criteriosas e ajustadas que traçou António Sérgio:

“O ânimo generoso e impetuoso do Padre levava-o a combater pelo que então podia, e como ele podia, e quanto ele podia: porém, achava-se metido num regime social que o não deixava lograr um progresso autêntico. O que temos de lhe louvar é a vontade magnânima, não o responsabilizando pela aparente pequenez do efeito, o único possível naquela época”. (4)



Desta forma, e para concluir, no contexto e amplitude do seu ideário, o Plano Alfa do Padre António Vieira, antecipando corajosamente a mentalidade dos tempos históricos, confirmou mais uma vez que no Maranhão o Éden podia esperar.



IV

Mãe-África, a União das Águas

O Padre António Vieira pautava todas as iniciativas por dois grandes objectivos: um de carácter religioso e missionário e outro de carácter social e político.
O primeiro dos objectivos, fundamental na sua própria opinião, era a conversão de todos os povos sem distinção de raças, desiderato este que pressupõe um aturado combate no seio da sociedade do seu tempo, uma vez que acreditava convictamente no princípio lógico de que os povos indígenas eram objecto de salvação.
O segundo, de um pendor assaz nacionalista, era consubstanciado em aspectos políticos, económicos e sociais, tendo em vista o desenvolvimento da Colónia e o enriquecimento e reforço do Estado Temporal.
No caso particular das Américas, incluindo o Brasil, a escravatura negra tornou-se a saída mais profícua da manutenção do sistema colonial.
Comprovadamente Vieira sempre se lamentou e compadeceu do sofrimento dos escravos nos “infernos dos engenhos”.
Apesar disso o nosso Jesuíta nunca se considerou abolicionista porque estava convicto, na qualidade de colaborador e conselheiro da Corte, da necessidade da mão-de-obra escrava.
Todavia Vieira sempre pugnou pela dignificação do ser humano recomendando – tendo em conta os casos de trato para com os negros – aos sustentadores do sistema que tratassem os seus escravos com humanidade, temor de Deus, não olvidando nunca a sua condição de cristãos, reconhecendo neles a sua filiação divina e a consequente necessidade salvífica de todo o género humano.
Teremos assim de considerar, em última instância – nos termos ajustados ao Plano Beta – e para melhor entendermos a posição do Padre António Vieira nesta questão tão sensível e complexa como o fenómeno da escravização, que ele, Vieira era (como já defendemos noutro passo) "filho do século”, isto é, da história do seu tempo.
E considerando, neste mesmo contexto, a consistência dos negócios do Reino, entre os quais destacamos a actividade mercantil da "sua" Companhia do Comércio para o Brasil, criada em 1649, compreendemos a lógica economicista do lídimo conselheiro de Estado.
Esta Companhia – na esteira da concorrência com as outras Companhias internacionais que ao tempo dinamizavam toda a navegação atlântica – necessitava de um tráfico permanente e lucrativo.
Obviamente que entre as "peças" de traficância de maior lucro avultavam os negros que, desde os confins da próxima Angola e da longínqua Etiópia, cada dia, cada mês e cada ano, eram incessantemente canalizados para as Índias Ocidentais.
As larguíssimas águas do mar Atlântico, amenizadas pelas correntes dos alísios benfazejos, uniam num intencional abraço humanitário os sonhos de sobrevivência dos nascituros da Mãe África.


Gostaria de recordar aqui o que nos sugere António Sérgio aquando do grave antagonismo que alastrou por todo o Brasil entre os colonos e os missionários da Companhia de Jesus, no que tocava à mão-de-obra escrava.
Diz-nos o eminente historiador:

“ começara para nós, portugueses, uma nova espécie de exploração das terras do Ultramar, com seus problemas próprios. Pretendiam os colonos a posse do indígena para a lida agrícola das suas terras; a Companhia, porém, intentava absorvê-los, enquadrando-os socialmente… e para isso, para tentar pôr fim à contenda, promoveram os Jesuítas, com Vieira na vanguarda, a escravaria de África; os colonos ficariam com os africanos, e eles com os Índios…”. (5)

E conclui Sérgio, mais adiante, mas dentro da mesma questão, que

“… devido à ganância pertinaz dos colonos, perante a estratégia desta moeda de troca, a preferência óbvia era a posse de todos eles, índios e negros.” (6)

Sendo assim, e quanto à minha opinião, trata-se apenas do estabelecimento de um acordo sustentado para a solução do trabalho escravo no Brasil que sempre balançou entre medidas circunstanciais de curto alcance social e um ideário utópico sem fim à vista.


V

O Gólgota dos audazes

A expulsão do Maranhão para a metrópole por pressão dos colonos, o processo elaborado pelo Santo Ofício contra si baseado nas ideias manifestas pelo seu ministério e pela oposição de políticos seus adversários, o exílio compulsivo no Porto e a prisão e julgamento em Coimbra, sob acusação de heresia e de colaboracionismo com instituições judaicas e, por fim, a sentença pelo Tribunal da Inquisição, sob a forma de cassação de palavra e submissão à pena de reclusão, eis os ingredientes de um puzzle expiatório Vieirino!
Seis anos de autêntica tortura para quem respirava, por todos os poros de corpo e de alma, a liberdade de movimentos e um prestígio nacional e internacional a todos os títulos notável.
Ora todo o processo de julgamento e condenação que teve de afrontar foi, a meu ver, pela sua própria natureza e características, uma inoportuna e maquiavélica vingança.
E mais grave se tornaria a situação se, entretanto, não ocorresse em Lisboa abruptamente uma mudança de regime político. Ocorrência feliz que, considerada pelo próprio Vieira como intervenção da vontade de Deus, o restitui finalmente à liberdade.
É a partir desta altura que Vieira resolve, num golpe de asa inteligente e oportuno, ir para o estrangeiro, começando por se fixar durante meia dúzia de anos na Cidade Eterna.

Reconhece como certa, a hora de colocar em prática um dos seus três grandes planos – o Plano Gama: libertar-se decididamente das malhas e do controle da Inquisição e, quem sabe, com a sua emancipação almejar a própria libertação de todo Reino das garras tenebrosas do Santo Ofício.
Na sequência deste evento – depois das “performances” conseguidas em Roma e da fama granjeada durante a sua estadia – registe-se que o próprio Vieira, pelo seu prestígio e influência, conseguiu sensibilizar de tal maneira a Corte Pontifícia que, além de apressar o reconhecimento diplomático do Reino de Portugal como independente, ele próprio recebeu das mãos do Cardial Altieri (devido à invalidez de Clemente X) um Breve que anulava, de uma penada, o Processo que lhe decretara o Santo Ofício, anos antes, e que suspendia determinantemente toda a actividade da Inquisição portuguesa.
Como eu já disse noutro lugar, nem tudo foram sucessos na acção de António Vieira, todavia encontro-me a léguas daqueles que defendem que o Jesuíta, nomeadamente na diplomacia política, foi um falhado integral. Não.
Célebres pensadores, tanto nacionais como estrangeiros, são unânimes em reconhecer, dentro de cada contexto específico, as virtualidades de todas as estratégias vieirinas.
Também não estou obviamente de acordo com D. Luís de Meneses que estranhamente – como bom conhecedor que era de todos os enredos cortesãos – não reconheceu, no contexto da Restauração Portuguesa, a qualidade das políticas diplomáticas cumpridas por Vieira, dizendo que :

“como o seu juízo era superior e não igual aos negócios, muitas vezes se lhe desvaneceram por querer tratá-los mais subtilmente do que os compreendiam os príncipes e ministros”. (7)

Ora o nosso Conde bem sabia de todas as maquinações de que eram capazes os obscuros adversários de António Vieira.
Ademais, ele próprio acabou por ser vítima a posteriori de idênticas maquinações.

VI

Epílogo: o Semeador infatigável

Não há notícia de um orador tão profícuo, tão demolidor e tão resistente, tendo em conta as adversidades e obstáculos existenciais e a especificidade de cada contexto histórico, como o nosso Padre António Vieira.
Muitas vezes, quando parecia que as situações se complicavam ou lhe eram mais adversas, é que Vieira com sua palavra carismática, oportuna e sábia, surgia com novos entendimentos e novas soluções.
Por isso mesmo consideramos ser ele, na esteira do pensamento da famosa Soror Inês de la Cruz, sua ilustre contemporânea, como «o grande resistente». (8)

Quero registar, neste contexto, o desabafo de um actual ensaísta português que, numa carta imaginária escrita ao ilustre Jesuíta, escreveu:

“Tu, sempre enfurecido com o Estado de Portugal, mesmo na morte dividiste-nos. Tão majestosa é a tua Obra que não sabemos o que dela havemos de pensar. Se um pedaço do céu na terra, se uma obra humana igualada à eternidade”. (9)

E, no que diz respeito aos Direitos Humanos mais essenciais ninguém como o Padre António Vieira deu tanto a cara e a alma pela sua implementação.
Concordarei, com o qualificado ensaísta da referida carta, quando diz mais adiante:

“… saíste em defesa do Índio, o que provocou a tua expulsão dos reinóis do Grão Pará, saíste em defesa do Negro (tratado não como um homem, mas como animal de carga) … e não te chegava – ainda saíste em defesa do Judeu e do Cristão-Novo. Tornaste-te suspeito da Inquisição e foste preso pelos habituais gafanhotos portugueses”.
E logo, mais à frente, rematando: “Maior Obra seria impossível ao Padre Vieira cumprir. Todavia, ele mais ainda cumpriu”. (10)

Antes de terminar a minha Comunicação queria recordar aquele triste episódio, da segunda metade do Século XVIII, acerca do debate sobre a Cultura de então.
Vários intelectuais portugueses, entre eles o destacado autor do Verdadeiro Método de Estudar, acusaram os Jesuítas de serem responsáveis pelo marasmo cultural e "atraso mental" de Portugal nessa época.
Diziam mesmo que se eles não tivessem sido vencidos pela “providencial saga” pombalina, certamente continuaríamos a ser apelidados de “índios da Europa”.
Basta só lembrar o Curso leccionado pelos Jesuítas no Colégio de Santo Antão, no qual se destacava a obra pedagógico-didáctica do próprio Padre António Vieira – avançadíssima para a época – para caírem por terra os argumentos daqueles que afirmavam que os Inacianos desconheciam as ciências exactas ou as filosofias modernas.
Claro que a intenção dos “detractores”, na altura, era não só exaltarem as virtualidades do Verdadeiro Método de Estudar, a moda do tempo como, obviamente, era uma forma de oportunismo e de subserviência para com o Regime instituído.
Apelidando, sem a mínima consideração, os membros da Companhia, nomeadamente Vieira, de retrógrados e conservadores e considerando-se a si mesmos como modernos e progressistas, denunciaram convincentemente a sua provinciana “costela de gafanhotos”.
E, tendo em conta esta matéria de julgamento, partilharei sem meias-tintas nem preconceitos, a preclara convicção Sergiana, quando afirma:

“se este grande elaborador de imagens e de símbolos, se este heróico batalhador por causas justas e grandes, aparecesse no Mundo cento e tal anos mais tarde, em tempos de racionalismo e de reformismo social – nos daria uma obra revolucionária e tónica, de sugestão perdurável e de dilatado alcance, vindo pois a ser ele a «figura» e o símbolo do pensamento iluminista e emancipador entre nós”. (11)


A partir dos pressupostos aqui realçados, poderei dizer, sem hesitações, que faltou a Verney e a outros opositores ao génio de Vieira, além de uma pontinha de humildade, aquela indómita frontalidade e honradez que foram histórico apanágio do egrégio Jesuíta.


Bem hajam!


F I M


NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) – Eysenck, H. J., Race, Intelligence and Education, London 1971
(2) – Lourenço, Eduardo, Prefácio em “A Missão de Ibiapaba” de António Vieira, Edições Almedina, Lisboa 2006
(3) – Coelho, António Borges, Cristãos-Novos Judeus e os Novos Argonautas, Editorial Caminho, Lisboa 1988
(4) – Sérgio, António, Prefácio e Notas em Cartas ( I ), Livraria Sá da Costa, 2ª Edição, Lisboa 1997
(5) – Obra Cit.
(6) – Obra Cit.
(7) – Meneses, Luís de, História de Portugal Restaurado, Editorial Civilização, Porto 1945-46
(8) – Cruz, Soror Inês de La, Carta Atenagórica,VIII – BIBLIOGRAFIA GERAL


A – Bibliografia Base


António Vieira, CARTAS, Prefácio e Notas de António Sérgio, Livraria Sá da Costa, 2.ª Edição, Lisboa 1997

António Vieira, CARTAS, Selecção e Ensaio de Mário Gonçalves Viana Domingos Barreira, Porto 1944

António Vieira, SERMÕES, Livraria Sá da Costa, 3 Volumes, Lisboa 1951

Azevedo, J. Lúcio de, História de António Vieira, 2 Volumes, Clássica Editora, 3.ª Edição, Lisboa 1992

Azevedo, J. Lúcio de, História dos Cristãos-Novos Portugueses, Clássica Editora, 3.ª Edição, Lisboa 1989

Besselaar, José Van Den, António Vieira: o Homem, a Obra, as Ideias, INCLP, Lisboa 1981

Cidade, Hernâni, Padre António Vieira, Editorial Presença, Lisboa 1985

Cidade, Hernâni, Coordenação de, Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício, Baía 1957

Meneses, Luís de, História de Portugal Restaurado, Editorial Civilização, Porto, 1945-46

Pêcora, Alcir, António Vieira, Escritos Históricos e Políticos, São Paulo 1995


B – Bibliografia Complementar


Azevedo, J. Lúcio de, A Evolução do Sebastianismo, Editorial Presença, Lisboa 1984

Azevedo, J. Lúcio de, Épocas de Portugal Económico, Clássica Editora, 4.ª Ed., Lisboa 1978

Boxer, C. R., O Império Colonial Português, Edições 70, Lisboa 1969

Coelho, António Borges, Cristãos-Novos Judeus e os Novos Argonautas, Edit. Caminho, Lisboa 1988

Eysenck, H. J., Race, Intelligence and Education, London 1971


Lobo, A. da Costa, Origens do Sebastianismo, Moderna Editora, Lisboa 1909

Freire, António, Padre António Vieira, 400 Anos do Nascimento, Portugal Editora, Lisboa 2008

Godinho, Vitorino Magalhães, Ensaios II, Sá da Costa, 2.ª Ed., Lisboa 1978

Lourenço, Eduardo e Viegas, João, A Missão de Ibiapaba, Edições Almedina, Coimbra 2006

Lourenço, Maria Paula, Guerras e Campanhas Militares, 1640-1668, Editorial Quidnovi, Lisboa 2008

Neves, João Alves das, Padre António Vieira – O Profeta do Novo Mundo, Aquarama Editora, 1998 São Paulo

Peres, Damião, História Monumental de Portugal, Barcelos 1934

Selvagem, Carlos e Cidade, Hernâni, Cultura Portuguesa, Volume 9, Editora Nacional de Publicidade, Lisboa 1978

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Publicado por FRASSINO MACHADO em 18/11/2008 às 21h27

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